terça-feira, 31 de março de 2009

“Sinfonia Inacabada”

Todos os dias pela manhã ele se ergue com a fumaça do café excessivamente doce. Escolhe as meias mais ralas e veste-se com a pompa necessária de um aposentado, repartindo milimetricamente os cabelos já ralos. Ela não está mais lá. Ele não compra mais pão e não arrisca Schubert no velho piano escuro. O som seria por demais triste, a casa inteira, ressonante, choraria a velha ausência. O gato esfrega-se em suas pernas cansadas, pedindo um afago mais longo. O jornal, sobre a mesa e sujo de café, já não desperta mais nenhum interesse – a não ser a seção de óbitos, onde reencontra os velhos amigos – não há mais ninguém com quem compartilhar as desgraças do mundo. Ele está só, entre as plantas e os livros, e prepara-se para mais um longo dia recheado de solidão. Escolher a bengala dela é como segurá-la de novo. Ritualmente ele entrega uma xícara ao porteiro, que o cumprimenta com a habitual cortesia e piedade. O prédio inteiro cheira a café, o prédio inteiro com o cheiro dela. Da porta para fora tudo continua hostil, ainda que não tenha mais que se preocupar com outro corpo mais frágil que o seu. Como bom velhinho que é, dedica-se a alimentar as pombas sujas enquanto outros velhos como ele o aguardam no resumo de suas vidas. Sempre os mesmos olhos tristes, as mesmas almas exaustas. Com sua vagarosidade peculiar, senta-se na mesinha da praça e enfrenta a maior aventura do cotidiano, o desbotado tabuleiro de xadrez. O amigo de boina azul começa desafiando-o com as peças brancas e ele restringe-se a proteger sua velha rainha. Ela era como aquela peça; sólida, escura, limitava-se a devorar e ser devorada na tentativa de guardar seu rei. Os bispos sabem disso; e com seus códigos em “L”, os cavalos, cavalgam em torno dela. Já não há mais torre para se esconder e nem peões para comandar. Ela gostava de vê-lo jogar. Sentava-se sem perdê-lo de vista e camuflava o olhar permanente com algum clássico da literatura. Não tricotava, dizia das velhas que tricotavam, que o cheiro se assemelhava ao de roupas guardadas há muito tempo. Bom era o aroma de algodão que exalava das camisas dele que ambos tinham o cuidado de lavar. Talvez fossem um pouco hippies, é verdade, mas quem negaria que toda aquela igualdade era bonita? As outras senhoras o olhavam, de longe, como se buscassem em algum lugar nele toda aquela obscuridade e ausência que só sentem os viúvos. Ele, fixo no jogo, admitia estar enlouquecendo. As peças haviam escrito aquele nome três vezes! Três vezes! Uma letra branca, outra preta, como deveria ser; um sendo a sombra do outro, a completude do outro. Aquele dia admitiu sua derrota desonrosa. O amigo de boina azul delimitou-se a segurar sua mão entre as trêmulas mãos dele e olhá-lo com uma indagação severa e terrível. Aquilo significou muito. Muito. No caminho para casa, embriagado com aquela indagação, pediu um expresso para ajudar a remoer e descobrir. Aqueles eram os olhos de Deus, sentiu como despido diante deles, sorvido na dúvida, era algo tão íntimo, uma dor tão sua e corrosiva... Buscou lembrar-se do que se passava na sua cabeça nos últimos dias. Deparou-se com o desejo por um câncer. Ela riria se escutasse isso, ele também teria rido. Assim, ouviriam um tango argentino e rodopiariam pela sala. Como é que depois de tanto tempo juntos alguém poderia esperar dele viver sozinho? O egoísta era ele ou os outros? Odiava perguntar-se, filosofia sempre foi a área dela, mas a cabeça já não o ajudava muito com os cálculos, se bem que era tudo uma questão de soma e subtração e ele vivia no vermelho desde que ela se calou. Talvez na velhice tivesse sido ainda mais feliz. O dia era ela e se deliciavam na companhia um do outro sem resignarem-se diante do estrago do tempo em seus corpos. Era como se o físico de ambos fosse mera distração. As almas estavam sempre de mãos dadas e o prazer que tinham nas conversas banais, no acordar ao lado um do outro substituía até o mais demorado e voluptuoso sexo que tiveram na juventude – e como tiveram – agora, só sobrou as velhas roupas rosadas e o perfume de café pela manhã. Imerso em sua própria ruína, observava o líquido escuro borbulhar e tragava a fumaça que exalava sem pudor. O gato miava a “Inacabada” enquanto ele decidia, descalço ou com meias? O pó diluído na mistura parecia não conseguir vencer o negro, que se mostrava exatamente como antes. O gosto talvez fosse um pouco diferente, lembrou-se de pôr mais açúcar e saboreou cada gota quente, cada uma com um gosto diferente do outra,ora de medo, ora de vontade. Ao fundo os miados disputavam com o tango preferido e a vizinhança parecia dormir. As pernas já não doíam mais e era possível ver os pés enrugados pela meia rala que já não tremia. A mão mole desfalece lentamente sobre o próprio corpo que é coberto pela tinta negra. Na manhã seguinte, o gato não teve em quem se esfregar.
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imagem: jogando xadrez com a morte - o sétimo selo, filme de Bergman

domingo, 29 de março de 2009

Andar luzes amarelas
Sentir palpitar da cor
Sentir arrepio pensar você
Afirmar coração
Fluir palavras desconexas
Andar caminho desconhecido
Acreditar o acaso
Pensar o destino
Imaginar um pode ser o outro
Até até a você?
A boca perde ousadia
Sabe alma verdade
Lá dentro algum lugar
Luz verde que não se apaga
Irradia o verde
Se esconde o verde
Nele inteira ousadia humana
A minha a sua.

(foto por joão henrique rolaça)

separação

queimaram o último ferro retorcido
até só sobrar migalhas de pão.
retinas giratórias
passeiam nas pontes de são paulo.
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trêmulas e sorrateiras mãos
agarram-me com dentes velozes.
sobre os órgãos internos
ergue-se o câncer do amor.
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cala-se o próprio silêncio,
troca-se a velha pele,
busca-se o pior caminho,
envelhecemos.
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lá fora os pássaros alçam voô.
uma menina imacula a faixa de pedestres
com teus pés em aspirais.
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o homem sonâmbulo me segue
atrás de menos sobriedade.
enquanto eu confisco o céu azul,
por um programa de TV barato.
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imagem: separation - edvard munch

quinta-feira, 26 de março de 2009

poema calado

versos solitários pousam nas maçãs do teu rosto,

é tarde.

os homens passam carregado o rancor que anoitece.

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teus olhos de andorinha machucada

sumiram do campo minado da minha visão

e eu, estarrecida, chupei 13 laranjas podres.

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a selvageria dos elevadores

pousam em tuas costas arqueadas.

15 cães passam, a noite esqueceu-se.

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whitman fuma seu cachimbo

enquanto rimbaud declama incêndios.

pudera tua alma, cor de violeta,

perturbar-me com tanto azul.

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imagem: wassilij kandinsky, mit und gegen